D'AMATO:
REFLEXÕES DURANTE A BANDAGEM
REFLEXÕES DURANTE A BANDAGEM
6 de março de 1985.
Plaza Convention Center, Albany, Nova York.
Chegamos cedo no local da luta. Eu e Mike mal conseguimos dormir. O momento para o qual nos preparamos tanto finalmente chegou.
Após 5 anos de intenso treino, muitas lutas clandestinas e amadoras, o garoto finalmente fará sua estreia como profissional. Não será da maneira como idealizamos, já que o plano era que Mike iria para as Olimpíadas, conquistaria a medalha de ouro e na sequência assinaria um lucrativo contrato para iniciar sua carreira profissional. Mas infelizmente o garfaram nas 2 lutas em que ele disputou a vaga, inacreditável o que fizeram com ele. Seu adversário, o mesmo nas 2 lutas, um frango chamado Henry Tillman só fugiu de Mike, e no primeiro combate ele chegou a tomar um knockdown, e ainda assim, os jurados conseguiram enxergar sua vitória, uma vergonha!
Mas, seguimos adiante. É verdade que Mike ficou bem desanimado com a perda da vaga, mas felizmente tinha Jan* (1) como minha arma secreta. Mike passou uma semana com ele, e ao voltar estava revigorado, e não via a hora de fazer sua primeira luta como profissional. Esse período com Jan meu deu a segurança de que o rapaz estava pronto para essa nova etapa.
Escolhemos o adversário com cuidado, Hector Mercedez, um porto-riquenho com 3 lutas profissionais e nenhuma vitória. Não será nenhum problema para Mike, e isso nem importa agora, o maior desafio dele será lidar com o nervosismo e a ansiedade que precedem todas as lutas.
Chegamos no vestiário, Mike está num frenesi, e na última hora decide fazer um corte de cabelo inspirado em Jack Dempsey, seu grande ídolo. Ele coloca uma cuia na cabeça e pede para Tom Patti, seu colega de treinos para raspar as laterais. O seu entusiasmo contagia a todos no local.
Após o corte de cabelo, peço para que ele se sente na minha frente, para realizarmos a bandagem. Normalmente seria Matt Baranski que faria isso, um grande profissional da minha confiança, mas como o evento é especial, decidi eu mesmo fazer. No fundo sei que isso também irá ajudar a diminuir minha própria ansiedade. O procedimento da bandagem é quase terapêutico, tanto pro treinador quanto para o atleta.
Mike se senta e começo o ritual, faço um aquecimento nas suas mãos, massageio seus dedos, a palma, isso é necessário para lubrificação, para liberar o líquido sinovial das articulações, e dessa forma não comprometer a eficácia da bandagem.
Em seguida, dou início ao procedimento em si: começo a passar a bandagem de gaze no seu antebraço, essa bandagem deve ser não elástica, o que é exigido no boxe profissional, passo pela mão, vou dando as voltas e me certifico que elas estejam ligeiramente apertadas, mas não demais para não haver déficit circulatório. A experiência de fazer isso por tanto tempo com tantos atletas me dá a segurança de achar esse equilíbrio: não tão apertado e nem tão frouxo, para não correr o risco de escorregar dentro da luva. Enquanto vou fazendo isso, pergunto a Mike se ele não está sentindo nenhum incômodo na mão.
Existe uma magia nesse momento da bandagem para o atleta, do ponto vista psicológico ele começa a entrar no clima da luta, a ansiedade, o nervosismo começa a ser substituído pela adrenalina do combate. Seu semblante começa a mudar, ele continua agitado, mas é uma agitação totalmente diferente; que só quem subiu no ringue sabe explicar.
Em seguida chega o momento de colocar o acolchoado sobre a cabeça dos metacarpos, o instrumento de trabalho mais importante de todo o boxeador. O manual do boxe diz que você deve atingir o rival com o impacto do segundo e terceiro metacarpo. Logo, mais natural que essa área receba a maior carga de proteção. Ao olhar para as mãos de Mike, me assombro com a quantidade de homens, adultos, maiores e mais fortes que ele nocauteou desde os 14 anos de idade. O menino realmente é uma força da natureza. Ele é o boxeador que esperei e idealizei durante tantos anos. Quis o destino que ele aparecesse na fase final da minha vida.
Começo a colocar o esparadrapo. E vou finalizando a bandagem da primeira mão.
Repito todo o procedimento na outra mão. Ao finalizar, Mike está com o semblante esbanjando confiança. Esse é outro aspecto fascinante da bandagem, quando se encerra, o boxeador se sente seguro, confiante de que com seus punhos protegidos ele é capaz de quebrar até concreto. Se sente um guerreiro dentro da armadura. Esse efeito placebo ocorre com todo boxeador.
Mike se levanta, e começa a realizar o aquecimento. Com a bandagem pronta, ele começa sua sessão de boxe sombra. Sua velocidade durante esse exercício é assombrosa. É incrível ver um peso pesado desferindo socos numa rapidez absurda.
Chega o momento da luta. Olho para ele, balanço a cabeça afirmativamente. A preparação foi a melhor possível. Sei que o dia de hoje será especial para o boxe.
Hoje, o futuro mais jovem campeão da história dos pesados começa a fazer história.
***
NOTAS:
1- Jan: O personagem fictício Jan Vojik aparece no livro ‘Tyson: Forjado no Fogo’, e foi responsável pela última etapa da educação pugilística do jovem Mike antes de se tornar profissional.